Apresentação

Re-imaginar a Lusofonia ou da necessidade de descolonizar o conhecimento

Colonialismos e pós-colonialismos são todos diferentes, mesmo quando referidos exclusivamente à situação lusófona. Neste contexto, mais do que procurar boas respostas, importa determinar quais as questões pertinentes aos nossos colonialismos e pós-colonialismos lusófonos.
Com efeito, problematizar a própria questão é começar por descolonizar o pensamento. Em nosso entender, esta é uma das tarefas candentes no processo de re-imaginação da Lusofonia, que passa, atualmente, pela procura de um pensamento estratégico que inclua uma reflexão colonialista/pós-colonialista/descolonialista.
Esta tarefa primeira, e mesmo propedêutica a qualquer construção gnoseológica, de descolonizar o pensamento hegemónico onde quer que ele se revele, não pode deixar de implicar as academias, centros de produção do saber e do conhecimento da realidade cultural, política e social. Neste sentido, descolonizar o pensamento sobre a Lusofonia passará por colocar em causa e instabilizar o que julgamos já saber e ser como ‘sujeitos lusófonos’, ‘países lusófonos’, ‘comunidades lusófonas’.
Trata-se, assim, de instabilizar a uniformidade, mas também as diferenças instituídas, que frequentemente não são mais do que um novo género de cânone integrador e dissolvente da diferença. Por outro lado, não podemos deixar de praticar uma atitude vigilante, de cuidado e suspeição, em face do discurso sobre a diferença irredutível, que pode tornar-se (como no passado) na estéril celebração do exótico. Fazer com que a diferença instabilize o que oficialmente se encontra canonizado como ‘diferença dentro do cânone’, implica negociar e re-inscrever identidades sem inverter dualismos. Uma reflexão pós-colonial no contexto lusófono não pode evitar o exercício da crítica às antigas dicotomias periferia/centro; cosmopolitismo/ruralismo, civilizado/selvagem, negro/branco, norte/sul, num contexto cultural de mundialização, transformado por novos e revolucionários fenómenos de comunicação, que têm também globalizado a marginalidade.
A tarefa de re-imaginar a Lusofonia implicará necessariamente a deslocação, inversão ou até implosão, do pensamento dual eurocêntrico, obrigando-nos a repensá-la dentro de uma mais vasta articulação entre local e global
Re-imaginar a Lusofonia em contexto pós-colonial implica, por isso, repensar a pós-modernidade em que se inscreve, e que convive paradoxalmente com o crescente isolamento dos países árabes e o rápido desenvolvimento económico da Ásia
Re-imaginar a Lusofonia obriga ainda, em nosso entender, a estudar as práticas de resistência e de contra-hegemonia, procurando compreender o que criam em troca, que lastro deixam nas sociedades e nas culturas contemporâneas, no que respeita à diminuição das desigualdades. A Lusofonia que procure um pensamento e um conhecimento descolonizado, não pode deixar de prestar uma atenção particular às comunidades minoritárias e de emigrantes, cujo estudo faz parte do próprio pós-colonialismo.
Note-se porém que o pós-colonialismo não está aqui no sentido nem geográfico (como sociedades subalternas) nem no sentido temporal (como sociedades libertas do colonialismo), mas pensamos, por outro lado, que uma re-imaginação da Lusofonia não pode dispensar uma análise comparativa e um diálogo profundo com os diversos colonialismos e pós-colonialismos contemporâneos, procurando encontrar as especificidades do caso lusófono.
Longe de se tratar de uma análise meramente discursiva (embora a inclua) importa estudar igualmente as modalidades vividas e concretas da situação pós-colonial (que implicam necessariamente também a investigação empírica) das comunidades que, quer disso tenham consciência quer não, vivem na linha de continuidade, cruzada e traficada, entre colonialismo e pós-colonialismo.
Desmistificar, desierarquizar, estabelecer uma política da diferença, permitir a multiplicidade das vozes, constituir outros tantos projetos de modernidades/racionalidades possíveis dentro da pós-modernidade, mobilizar, re-politizar, imaginar outros modelos políticos, sociais e económicos, eis a tarefa (utópica, naturalmente) que nos parece ser essencial no re-imaginar a Lusofonia.
Assim, nesta proposta, propedêutica e maiêutica da própria Lusofonia, pretendemos implicar colonialismo, pós-colonialismo e descolonização numa política de identidade lusófona (que se constitui em primeiro lugar como um conjunto de narrativas) a delinear e implementar, numa situação de permanente negociação do sentido, e da história, reconhecendo a sua natureza estruturalmente ambígua. Na verdade, não podemos ignorar que pensar o pós-colonialismo hoje terá de passar pela crítica já realizada aos lugares da modernidade, não podendo deixar de se fazer a partir da pós-modernidade e do pós-estruturalismo.
Ao radicarmos esta proposta no contexto epistemológico dos Estudos Culturais não podemos ignorar os contributos das teorias da subalternidade e da representação na construção de um projeto que re-imagine a Lusofonia. Com efeito, o pós-colonialismo é uma temática de investigação e trabalho central dos Estudos Culturais desde a sua génese, na sequência da teoria crítica e do pós-estruturalismo, que se tem cruzado com as temáticas do multiculturalismo, hoje objeto de múltiplas críticas.
Um tal projeto implica, em nossa opinião, trabalhar a ideia de que colonialismos e pós-colonialismos marcam as culturas e as histórias de colonizadores e colonizados, misturando, de diferentes formas, os seus ‘destinos’. Não há colonialismos nem pós-colonialismos iguais. Cada qual tem de reconstruir, conhecer, simbolizar e integrar a sua própria história e definir sentidos possíveis de futuro. Também não há como não o fazer, pois o ‘destino’ que em comum nos coube, para o melhor e o pior, é um dado com o qual podemos e devemos pensar o futuro.
Mas o que será decisivo neste projeto é descolonizar a cultura, o pensamento, as práticas sociais, a política e a ciência: uma tarefa que cabe a colonizados e colonizadores, nas suas próprias culturas e sociedades, mas também nas relações que estabelecem hoje entre si (onde encontramos ainda todas as figuras de poder que a relação colonial institui, apenas agora multiplicadas e aplicadas em todos os sentido possíveis).
O Colonialismo traz a marca dos interesses de quem exerce e pode exercer o poder. Re-imaginar a Lusofonia impele-nos a trabalhar no sentido de descolonizar as relações ente países, entre comunidades recetoras e emigrantes, entre o norte e o sul, entre o mundo anglófono e o outro, entre o saber erudito e o saber comum, o saber sobre o homem e o conhecimento técnico.
É que, como nos diz Stuart Hall, «[…] a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma ‘arqueologia’. A cultura é uma produção. Tem a sua matéria-prima, os seus recursos, o seu ‘trabalho produtivo’. Depende de um conhecimento da tradição enquanto ‘o mesmo em mutação’ e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse desvio através dos passados faz é capacitar-nos, através da cultura, a produzir-nos a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas do que nós fazemos das tradições» (Hall, 1999/2003:p. 44).
E que melhor inspiração do que esta para nos lançarmos no apaixonante projeto de re-imaginar a Lusofonia?
Maria Manuel Baptista
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; Tradução Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2003.Re-imagining Lusophony or the need to decolonize knowledge
Colonialisms and post-colonialisms are all different, even when referred solely to the Lusophone situation. In this context, more than looking for good answers, it is important to determine which issues are relevant to our Lusophone colonialisms and post-colonialisms.
Indeed, to problematize the matter/the question itself is to start by decolonizing the mind. In our opinion, this is one of the pressing tasks in the process of re-imagining Lusophony, which nowadays should involve the search for a strategic thinking that includes a colonial/postcolonial/decolonial reflection.
This primary, and even propaedeutic task to any gnoseological construction, of decolonizing hegemonic thinking wherever it appears, requires the involvement of the academies, production centers of science and knowledge of cultural, political and social reality. In this sense, to decolonize the thinking about Lusophony will entail the questioning and unsettling of what we think we already know and is such as ‘Lusophone subjects’, ‘Lusophone countries’, ‘Lusophone communities’.
In other words, the task at hand is that of destabilizing uniformity, but also the established differences, which, more often than not, are but a new type of integrative and difference dissolvent canon. On the other hand, we must maintain a vigilant attitude, of care and suspicion, in the face of the discourse on irreducible difference, which may become (as it did in the past) the sterile celebration of the exotic. To make the difference destabilize what is officially canonized as ‘difference within the canon’ involves negotiating and re-inscribing identities without reversing dualisms. A postcolonial reflection in a Lusophone context cannot avoid the exercise of criticism to the old dichotomies of periphery/center, cosmopolitanism/rurality, civilized/savage, black/white, north/south, in a context of cultural globalization, transformed by new and revolutionary communication phenomena, which have also globalized marginality.
This task of re-imagining Lusophony will necessarily entail the shifting, inversion or even the implosion of the Eurocentric dual thinking, forcing us to re-think it within a broader articulation between local and global.
Re-imagining Lusophony in a post-colonial context entails, therefore, to re-think the post-modernity in which it is inscribed, and that paradoxically coexists with the growing isolation of Arab countries and the fast Asian development.
Re-imagining Lusophony also requires, in our understanding, the study of practices of resistance and counter-hegemony, aimed at the understanding of what they create in return, what ballast they leave in contemporary societies and cultures, concerning the reduction of inequalities. If Lusophony is seeking a decolonized thought and knowledge, it has to pay particular attention to the minoritary and emigrant communities, whose study is part of post-colonialism itself.
It should be noted, however, that post-colonialism is not used here either in the geographical sense (as subaltern societies) or in the temporal sense (as societies freed from colonialism), yet we believe that the re-imagination of Lusophony cannot do without a comparative analysis and a profound dialogue with the many contemporary colonialisms and post-colonialisms, while striving to find the specificities of the Lusophone case.
Far from being a merely discursive analysis (although including it), it equally matters to study the lived and concrete modalities of the post-colonial situation (which necessarily entail empirical investigation as well) of those communities that – either they’re aware of it or not – live in the line of continuity, crisscrossed and trafficked, between colonialism and post-colonialism.
To demystify, to dehierarchize, to establish a policy of difference, to allow a multiplicity of voices, to constitute so many projects of possible modernities/rationalities within post-modernity, to mobilize, to re-politicize, to imagine other political, social and economical models, this is the task (utopian, of course) that is, for us, essential in the re-imagining of Lusophony.
Thus, in this propaedeutical and maieutical proposal of Lusophony itself, we mean to imply colonialism, post-colonialism, and de-colonization in a policy of Lusophone identity (which constitutes itself primarily as a set of narratives) to be outlined and implemented, in a situation of permanent negotiation of meaning, and of history, recognizing its structurally ambiguous nature. Actually, we cannot ignore that the thinking of post colonialism today must go through the already existing criticism to the places of post-modernity, while remaining in the standpoint of post-modernity and post-structuralism.
By radicating this proposal within the epistemological context of Cultural Studies, we cannot ignore the contributions of the theories of subalternity and of representation in the building of a project that re-imagines Lusophony. Indeed, post-colonialism is a core research and work topic for Cultural Studies since its inception, in the wake of critical theory and post-structuralism, which has been crossed with the topic of multiculturalism, now the object of much criticism.
Such a project will entail, in our opinion, further work on the idea that colonialisms and post-colonialisms mark the cultures and histories of colonizers and colonized, mixing, in different ways, their ‘fates’. There are no equal colonialisms and post-colonialisms. Each one has to reconstruct, know, symbolize and integrate its own history and define possible future directions. Besides, there is no way not to do so, as the common ‘fate’ that was given to us, for better or worse, is a given with which we can and must contemplate our future.
But what will be decisive in this project is to decolonize culture, thought, social practices, politics and science: a tasks that falls on the hands of colonized and colonizers, on their own cultures and societies, but also on the relations they currently establish between them (where we can still find all the power figures that the colonial relationship institutes, now only multiplied and applied in every possible sense).
Colonialism carries the mark of the interests of those who exert and can exert power. Re-imagining Lusophony impels us to work towards decolonizing the relations between countries, between receiving and emigrant communities, between north and south, between the Anglophone world and the other, between scholarly and common knowledge, the knowledge on Man and the technical knowledge.
The thing is that, as Stuart Hall tells us, “[…] culture is not only a journey of rediscovery, a return trip. It isn’t an ‘archeology’. Culture is a production. It has its raw material, its resources, its ‘productive labor’. It depends on a knowledge of tradition as ‘the changing same’ and an effective set of genealogies. But what this detour through the past does is to enable us, through culture, to produce ourselves again, as new kinds of individuals. So it is not a matter of what traditions make of us, but of what we make of traditions “(Hall, 2003: p. 44).
And what better inspiration than this to throw ourselves into the exciting project of re-imagining Lusophony?

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organizer Liv Sovik; Translation Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2003.